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Projetos

Choque de Civilizações

Em uma jornada até a última terra – finis terrae –, o encontro entre os fazendeiros europeus e os caçadores-coletores significou a sentença de morte destes últimos. Mas a História ainda não acabou.
Este projeto foi realizado com o apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting
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Prólogo

Há pouco mais de 500 anos o navegador português Fernão de Magalhães descobriu uma passagem marítima no Sul do planeta, uma região desconhecida pelos europeus, que a chamavam de Terra Australis Incognita. Essa descoberta uniu o mundo na primeira globalização da sociedade moderna. A passagem ficou conhecida como estreito de Magalhães. No rastro de Magalhães vieram os fazendeiros europeus, homens que já haviam domesticado plantas e animais e que ao chegarem a agora batizada Tierra del Fuego encontraram caçadores-coletores que viviam ali há mais de 10 mil anos, como resultado da grande aventura da migração do homem pelo planeta. Entre as tribos que ali viviam, havia uma etnia que viria a ser conhecida como Selk’nam. O encontro entre os fazendeiros europeus e os caçadores-coletores significou a sentença de morte destes últimos. Uma tragédia que até hoje está na ordem do dia. Considerados extintos nos livros de história e nas leis escritos pelos vencedores, os sobreviventes clamam estar vivos. E agora lutam pelo reconhecimento.

Karokynká

Marcio Pimenta
Nina Radovic Fanta

Espírito Selknam-2.png

Há pouco mais de 500 anos o navegador português Fernão de Magalhães, liderando uma expedição do reino da Espanha, descobriu uma passagem marítima no Sul do planeta, uma região desconhecida pelos europeus, que a chamavam de Terra Australis Incognita. A descoberta uniu o mundo na primeira globalização da sociedade moderna. Tateando em busca de uma passagem para as Índias, a expedição, comandada pelo explorador a bordo da nau Victoria, já estava abaixo da latitude 52º S quando, sob o nevoeiro, foram avistadas fogueiras na costa da América do Sul. Era o primeiro sinal de presença humana. Os navegantes não sabiam, mas aquela terra se chamava Karukinka (Nossa Terra) e as fogueiras eram acesas pelo povo Selk’nam (também conhecido como Ona) para enfrentar o frio e cozinhar alimentos. Os Selk’nam haviam chegado ali há mais de dez mil anos, como resultado da grande aventura de nossa espécie pelo planeta, uma jornada de pelo menos 60 mil anos, iniciada no vale do Rift, no leste da África, ao longo da qual os humanos se espalharam por tudo e encontraram ali a última terra – finis terrae –, a última fronteira continental.

 

No século 19, chegariam outros europeus e seus descendentes – dessa vez para ficar. Eram fazendeiros, trazendo a cultura das plantas e animais domesticados, e missionários salesianos. Os forasteiros encontraram grupos de caçadores-coletores que viviam de forma nômade naquele ambiente selvagem e inóspito, de curtos verões e longos invernos. O encontro entre os fazendeiros europeus e os caçadores-coletores significou a sentença de morte destes últimos. Um genocídio que, em vinte anos, provocou o extermínio quase completo da população da Terra do Fogo. Quase.

 

A Terra do Fogo é um arquipélago da Patagônia separado do continente sul-americano por um estreito, hoje conhecido como estreito de Magalhães, que liga o oceano Atlântico ao oceano Pacífico (assim batizado por Fernão de Magalhães) – e que uniu o mundo. O nome Terra do Fogo (Tierra del Fuego em espanhol) também foi dado por Magalhães em 1520, ao avistar de sua embarcação as chamas e a fumaça das muitas fogueiras dos nativos na costa da ilha Grande, a principal do arquipélago. Liderando uma expedição espanhola, Magalhães foi o primeiro europeu a alcançar aquelas terras dos ventos vivos.

Muito antes que a Terra do Fogo fosse dividida entre Argentina e Chile (em um tratado assinado em 1881) diversos aventureiros tentaram ocupar Karukinka. 

Primeiro buscavam ouro. E trouxeram com eles germes que provocaram epidemias de tuberculose, sífilis e infecções respiratórias – as mesmas armas biológicas que atingiram e dizimaram outros povos ameríndios. Era o início do fim. A seguir houve a chegada em massa de fazendeiros europeus, chilenos e argentinos que viram em Karukinka o lugar perfeito para a criação de ovelhas para a produção de lã e carne. Assim, invadiram e se apossaram do território que era ocupado pelos grupos Selk’nam, Tehuelche, Yagane, Haush e Kawesqar, entre a Patagônia e a Terra do Fogo.

O guanaco (Lama guanicoe) foi fundamental para a sobrevivência dos povos da Terra do Fogo. Dele, tiravam o alimento, o couro para confecção de roupas e utensílios e fios para fabricação de flechas. Terra do Fogo, Chile, 2021. Foto: Marcio Pimenta

O guanaco (Lama guanicoe) foi fundamental para a sobrevivência dos povos da Terra do Fogo. Dele, tiravam o alimento, o couro para confecção de roupas e utensílios e fios para fabricação de flechas. Terra do Fogo, Chile, 2021. Foto: Marcio Pimenta

A invasão custou aos Selk’nam sua terra e a liberdade da cultura nômade, ao mesmo tempo em que perceberam que era muito mais fácil caçar uma ovelha domesticada do que um guanaco selvagem. Isso, é claro, não seria aceito pela cultura dos fazendeiros, que viam na propriedade privada o salto para o progresso – embora não se possa provar que tal estilo de vida tenha nos aproximado da felicidade. O convívio entre fazendeiros e caçadores-coletores era impossível. Os recém-chegados decidiram erradicar a população Selk’nam a fim de se apropriar de toda a terra e contrataram caçadores de recompensa. Estes cortavam as orelhas dos Selk’nam flagrados ao caçar ovelhas e as exibiam aos fazendeiros como prova do “trabalho” para receber o pagamento. Os Selk’nam reincidentes tinham a cabeça decepada. Naturalmente, houve reação, e os Selk’nam mataram os fazendeiros que conseguiram alcançar com suas flechas.

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Grupo familiar Selk´nam. Região entre o Rio Grande e o Lago Yehuin, Isla Grande, Tierra del Fuego. Fotografia de Alberto María De Agostini. 1915. Fotografia gentilmente cedida pelo museu Maggiorino Borgatello, Punta Arenas, Chile.

No entanto, era um conflito desequilibrado, e logo os homens Selk’nam foram exterminados. Idosos, mulheres e crianças foram capturados e vendidos como servos domésticos ou enviados para as missões salesianas em Rio Grande (setor argentino) e na ilha Dawson (setor chileno) para serem “civilizados”. As mulheres foram repetidamente estupradas e forçadas a se casar com não nativos. Doenças, desnutrição, evangelização, perda de cultura e separação das famílias dizimaram a população. Restaram apenas crianças em tenra idade. Quando os fazendeiros chegaram, havia cerca de quatro mil Selk’nam; em 1930, havia pouco mais de cem. Os Selk’nam foram dados como extintos nos livros de história e nas leis escritos pelos vencedores.

 

Relatos dos salesianos descrevem os Selk’nam como um povo de habilidades incríveis. Eram capazes de enxergar muito além do que os europeus conseguiam avistar mesmo com binóculos. Também eram dotados de fenomenal capacidade auditiva. Aprendiam outros idiomas com facilidade, exibiam capacidade criativa muito acima da média e talento para pintura e desenho. Seu imaginário desenvolveu histórias e cultura religiosa admiráveis. Além disso, eram reconhecidamente amáveis e gentis.

Um século – e ditaduras – se passou sem que o genocídio Selk’nam fosse abordado. Isso começou a mudar apenas recentemente, na década de 2010, graças à internet, onde usuários que buscavam suas origens se encontraram. Agora, juntos, os Selk’nam encaram o processo de reescrever a história oficial, de descolonizar e desnaturalizar a perspectiva histórica, de recuperar e ressignificar o que aconteceu. Eles criaram centros comunitários onde as experiências, as histórias e as memórias de família são compartilhadas e a verdade é confrontada. No Chile, os Selk’nam estão organizados na Comunidad Covadonga-Ona, e na Argentina,  Comunidad Rafaela Ishton, para lutar por seus direitos – a começar pelo reconhecimento de que ainda existem, de que não foram extintos. É um povo vivo.

 

A Comunidad Rafaela Ishton existe desde a década de 1980 e foi uma das primeiras a obter jurisdição legal na Argentina. Em 1995, os Selk’nam foram reconhecidos como povo indígena pelo Estado argentino. Mais de 600 famílias, somando cerca de mil pessoas, identificam-se como Selk’nam no país.

 

No Chile, a Comunidad Covadonga Ona obteve jurisdição legal em 2015, com o nome Corporación Selk’nam. A organização conta com mais de cinquenta membros e suas famílias, totalizando cerca de duzentas pessoas. De acordo com o censo chileno de 2017, 1.144 pessoas se identificaram como Selk’nam; entretanto, o Estado chileno não reconhece a existência dos Selk’nam como povo. A Corporación luta pela inclusão dos Selk’nam na lista de “etnias principais” reconhecidas pela Lei Indígena nº 19.253, de 1993.

 

Hema’ny Molina, presidente da Corporación Selk’nam Chile, e Miguel Pantoja, membro da Comunidad Rafaela

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Grupo selk´nam. Región entre Río Grande y Lago Yehuin, Isla Grande, Tierra del Fuego. Fotografia de Alberto María De Agostini. 1915. Fotografia gentilmente cedida pelo museu Maggiorino Borgatello, Punta Arenas, Chile.

Os europeus trouxeram os cavalos e as ovelhas. O modo de vida que exigia grandes áreas de terra causou o conflito com os Selk'nam. Terra do Fogo, Chile, 2021. 

Os europeus trouxeram os cavalos e as ovelhas. O modo de vida que exigia grandes áreas de terra causou o conflito com os Selk'nam. Terra do Fogo, Chile, 2021. 

Ishton, não aceitam ser vistos como “descendentes” dos Selk’nam. “Não sou descendente, sou Selk’nam”, afirma Pantoja. “Ter de me explicar, de me pensar, é algo violento”, diz ele.

 “Eu sempre soube que era Selk’nam, mas isso não significava viver como tal ou entender como fazê-lo. Existem várias camadas complexas. Durante muitos anos houve uma sensação de solidão, pois não sabíamos da existência de outras famílias. Era uma sensação de vazio e total solidão. Com quem vou falar? Para quem vou contar? Será que as pessoas vão acreditar em mim?”

Hema’ny Molina

Na última década, muitos Selk’nam empreenderam jornadas emocionais e físicas para conhecer e reconhecer a trágica história de seus ancestrais. Não é um caminho fácil. “Nosso primeiro vislumbre como Selk’nam é sempre doloroso porque o que contam nos livros de história não é a história que conhecemos. A maioria de nós passa por uma busca espiritual para preencher o vazio, o sentimento de não se encaixar, de não pertencer a lugar nenhum, até encontrarmos nossa cultura. As respostas estão ali, embora não estejamos na Terra do Fogo”, diz Hema’ny Molina, que vive em Santiago do Chile.

 

A maioria dos Selk’nam mora longe da Patagônia, em cidades chilenas (Santiago, Valparaíso, Villa Alemana, Valdívia, Arica) e no exterior (Suécia, Estados Unidos e Canadá) desde que as crianças sobreviventes foram levadas da Terra do Fogo. Há muito por descobrir. Eles contam com a ajuda de pesquisadores da Universidad Católica Silva Henríquez e da Universidad de Magallanes. Alejandro Núñez Guerrero, diretor do Centro Universitario de la Universidad de Magallanes em Porvenir (Chile), tem costurado acordos para que mais pesquisas de campo sejam realizadas – recentemente descobriu-se que a primeira estância dos colonizadores foi construída no lado chileno e não no argentino, como se imaginava – e que os Selk’nam estejam mais presentes na Terra do Fogo. Tudo isso é fundamental no processo de reconhecimento.

O genocídio marcou profundamente os poucos Selk’nam que permaneceram na Patagônia. Os sobreviventes criaram os filhos sem enfatizar sua etnia. Foi o caso da bisavó de Miguel Pantoja. “Para proteger as gerações seguintes, os mais velhos não transmitiram o idioma. Por isso não falo a língua Selk’nam”, diz Miguel, que reside em Rio Grande, na Ilha Grande da Terra do Fogo. Ainda hoje, os habitantes da Ilha Grande não assumem a ascendência Selk’nam. “O estigma da morte era tão forte que os Selk’nam não queriam ser indígenas; assim, criaram os filhos com critérios não indígenas”, diz Hema’ny Molina. Negar a etnia foi uma forma de sobreviver.

 

Hector Chogue, ex-vice-presidente da comunidade Covadonga Ona, e seu irmão José Luis Vásquez Chogue, secretário da Corporación Selk’nam, estão em uma busca pessoal de mais de trinta anos. Somente há três anos descobriram ser Selk’nam ao ver o nome do avô em um dos cadernos de registros de nascimento dos salesianos da ilha Dawson. A recente jornada de autodescoberta como Selk’nam se tornou também um périplo de intermináveis reuniões com políticos chilenos para incorporar os Selk’nam à Lei Indígena. O principal objetivo é fazer com que sejam conhecidos como Selk’nam vivos, ao contrário do que ainda é ensinado. “É difícil dizer quem sou, porque o Estado não nos reconhece”, diz José. Os Selk’nam esperam o reconhecimento no início de 2022, prazo dado pelo Estado chileno à comunidade para provar que está viva.

 

Nesse ínterim, Hector, José e muitos outros estão aprendendo a ser Selk’nam. José esteve pela primeira vez na Terra do Fogo em outubro de 2021. “Foi uma emoção e uma energia que eu nunca havia experimentado. Tentei ver e viver o lugar com os olhos do meu avô”, diz ele. Os irmãos Chogue e sua família ficaram sabendo há poucos anos que seu sobrenome é de origem francesa, proveniente do homem que, na década de 1840, adotou seu avô, batizado pelos salesianos como Carmelo. “O que aconteceu com os Selk’nam não pode ser esquecido pela sociedade chilena”, diz Hector. Quanto ao futuro próximo, ele e outros Selk’nam estão preparados para deixarem de ser anônimos e serem vistos: “Temos a responsabilidade de tornar visível a nossa cultura”.

 

Agora, querer ser reconhecido como Selk’nam não significa querer ser visto como os indígenas do passado ou como peças de museu. Os Selk’nam buscam sua identidade como pessoas modernas e integradas, em uma jornada para reconstruir as histórias familiares. Para o século 21, Hema’ny Molina está interessada na verdade como ela é, sem noções românticas. “As pessoas querem nos ver como antes, mas nós crescemos como todo mundo, temos celulares, computadores, empregos, pagamos impostos, cumprimos horário de trabalho”, diz ela. Miguel Pantoja reforça a necessidade de que as pessoas abandonem os estereótipos raciais: “Apesar de tudo, não morremos, mas nos transformamos. Estamos vivos e presentes em nossa terra”.

Localizado na Bahía Inutil, um dos sítios arqueológicos mais importantes é a Pedra de Marazzi, reconhecida como um dos locais de povoamento mais antigos da ilha, atingindo 9.500 anos. Aqui foram encontrados instrumentos líticos e outras evidências da presença de grupos de caça de pássaros e guanacos. Terra do Fogo, Chile, 2021. Foto: Marcio Pimenta

A Cauda do Dragão

Eduardo Bueno

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Eis o estreito que escancarou o mundo. A frase ecoa um dos tantos paradoxos que cercam o labirinto de ilhas e baías, de meandros e becos, de canais e geleiras através do qual os navegantes europeus descobriram que o mundo deles era menos do que a metade do mundo real – e que a Terra era redonda e que o Atlântico mais parecia uma piscina se comparado ao imenso oceano que, em mais uma das ironias que cercam aquela “descoberta”, o intrépido Fernão de Magalhães ainda assim optou por batizar de Pacífico.

 

Em meio a uma jornada épica de fome e suplícios, de superação e desditas, Fernão de Magalhães, um português ressentido, naturalizado espanhol, manco e zarolho – e um dos maiores navegadores de todos os tempos – decidiu chamar último recanto do planeta de Terra do Fogo e seus habitantes de patagões, embora nem aquela terra nem aquele povo fossem nem uma coisa, nem a outra.

 

Seja como for, não restam dúvidas de que foi Magalhães quem colocou no mapa esse emaranhado de fiordes e bancos de areia, de infindas enseadas e falsas passagens. O labirinto que conecta as duas metades do mundo, o sinuoso estreito que já houve quem tenha mais apropriadamente chamado de Cauda do Dragão. O lugar onde, feito um tapete puído, o continente se esfarela e lança seu último suspiro, compondo uma canção de fogo e gelo, uma sinfonia de terras relutantes e de águas que tanto batem até que furam.

 

Um mundo inclemente. A não ser, é claro, que você seja um Tehuelche, um Selk’nam (ou um Ona), um Yaghan, um Haush ou um Alacaluf – os nativos que, em função de suas fogueiras ardentes, avistadas por Magalhães e sua tripulação, entrariam para a história com o nome de fueguinos, habitantes da assim batizada Terra do Fogo. Eles eram – de certa forma ainda o são – os ocupantes originais do pedaço mais impiedoso do continente. E foi em meio àquele universo de sons e cores espectrais, do torvelinho de ventos, areias e marés, que os “fueguinos” construíram sua vida material e espiritual, seu conjunto de crenças, seus costumes ancestrais, seu lugar no mundo...

 

E se ali o mundo físico parece se decompor, esboroando-se pedaço a pedaço, torrão a torrão, cubo de gelo por cubo de gelo, tudo a se precipitar, ora com um rugido, ora com um gemido, essa é também a metáfora da forma como se descompôs a vida dos nativos após o desembarque dos europeus – momento a partir do qual aquela finisterra se tornou também o fim do mundo, como uma avant-première do apocalipse.

No entanto, tudo que parece estar terminando talvez esteja só renascendo. Afinal, no momento em que um atônito, enregelado e famélico Fernão de Magalhães transpôs o estreito que tornou o planeta muito mais largo, o que de fato ruiu foram as concepções geográficas do Velho Mundo de onde ele vinha. E, se o novo mundo que naquele instante nasceu não se tornou mais pacífico, ao menos revelou-se definitivamente redondo – embora alguns chatos ainda achem que a Terra é chata como eles.

 

Mas a Terra é redonda e gira. E assim, todo santo dia, o Sol lança suas chamas na Cauda do Dragão.

Paisagens Ancestrais do Fim do Mundo

Sergio Baeriswyl Rada